Resenha: Marx, Mészáros e o Estado

terça-feira, 15 de março de 2016

Resenha [1]
Marx, Mészáros e o Estado
Edivânia Melo, Mariana Alves de Andrade e Maria Cristina Soares Paniago (org.)
São Paulo: Instituto Lukács, 2ª reimpressão, 2014, 80 p.

Liana França Dourado Barradas [2]

Nesta coletânea, os pesquisadores interessados nos fundamentos da teoria marxista sobre o Estado terão acesso, de forma introdutória, ao pensamento de Marx e Mészáros no que se refere à análise da essência dessa forma política de dominação e manutenção da exploração do trabalho pelo capital.
A coletânea Marx, Mészáros e o Estado é composta por três artigos que nos oferece uma análise radicalmente crítica do Estado. Os artigos resgatam alguns dos textos clássicos que debateram a temática do Estado capitalista, ajudando-nos a compreender melhor a função social, os fundamentos e o seu desenvolvimento a partir da teoria marxista. Mesmo que de forma introdutória, há a iniciativa de ressaltar que para Marx e Engels o Estado representa desde a sua origem, e ainda mais ao longo do seu desenvolvimento, uma forma social de dominação. As autoras evidenciam que o Estado atua de modo complementar e recíproco com a reprodução material das bases sócio-históricas que sustentam as relações sociais classistas.
No artigo que dá início à coletânea, intitulado “De Marx a Mészáros: a inseparável relação entre o Estado e a reprodução do capital”, Mariana Andrade assinala que o arcabouço teórico que fora produzido por Marx e Engels sobre o Estado ainda encontra ressonância na realidade social contemporânea, tal como propõe a contribuição teórica de István Mészáros. Ao revelar os nexos intrínsecos insuperáveis entre a economia e o Estado, resgata-se a sua natureza classista como órgão fundamental de dominação e opressão da classe dominante sobre a classe dominada. O Estado surge como força social aparentemente neutra, mas que conserva historicamente a imanente função de responder afirmativamente às demandas das classes dominantes, sempre que as lutas de classes colocam em xeque os imperativos inconciliáveis das classes fundamentais. Sobre a consolidação do Estado no contexto da universalização da produção da mercadoria, do assalariamento e da consolidação da propriedade privada capitalista, a autora descreve a história das revoluções burguesas ao revelar o fundamento da emancipação política. Dando continuidade ao pensamento de Marx e Engels, Mészáros delineia, segundo a autora, várias das funções realizadas pelo Estado moderno. Demonstrando os fundamentos da reprodução sociometabólica do capital, Andrade revela que, para Mészáros, o Estado constitui unidade complementar para garantir o comando político do capital e assegurar a produtividade do sistema vigente. Além disso, a autora destaca a importância das funções sociais do Estado moderno no que se refere à ação direta sobre “os defeitos estruturais do capital” (p. 21). Nesse sentido, partindo da argumentação teórica contemporânea de Mészáros, a autora resgata a atualidade da análise de Marx e Engels sobre o Estado e, por essa via, nos leva a refletir sobre as particularidades que essa forma política assume na modernidade, reiterando o seu fundamento, qual seja: estar intrinsecamente ligado à reprodução do sistema do capital.
No artigo seguinte, intitulado “Os limites objetivos da política parlamentar no sistema do capital”, Edivânia Melo resgata o contexto histórico de lutas da classe trabalhadora no século XX, enfatizando também a influência avassaladora e nociva da perspectiva revisionista e reformista para o movimento operário. Explicita, através de Rosa Luxemburgo e Mészáros, que em tempos de configuração de grandes perdas ao avanço da luta socialista e de uma crise estrutural do capital, os rumos do movimento dos trabalhadores sentiram profundamente os impactos dos “descaminhos da esquerda” ao optarem pelo parlamentarismo burguês como campo de intervenção privilegiado. Destaca a autora que a estratégia reformista supervalorizava as reformas sociais, o pacto de conciliação de classes e a política colaboracionista entre o partido socialista e a classe dominante, propondo a transição gradual e pacífica para o socialismo. Melo (p. 30) resgata o pensamento analítico crítico de Mészáros e ressalta que sejam quais forem as tendências reformistas da social-democracia ocidental, os objetivos estratégicos considerados “viáveis” se restringem tão somente ao limite do locus parlamentar. Contra tal visão defensiva, e apoiando-se na análise de Mészáros, a autora reitera que o enfrentamento à dominação política e econômica do capital requer uma forma radicalmente diferente de ação e a ruptura com o sistema do capital, que exige a destruição da tríade Estado-capital-trabalho. Indica também que as mudanças propostas pela social-democracia reformista podem ser reabsorvidas pelo sistema do capital de acordo com as suas necessidades. Melo enfatiza a necessidade de se analisar a direção e os aspectos regressivos das lutas dos trabalhadores ao depositarem suas expectativas de mudanças na proposta reformista. A indagação de fundo reside na análise crítica das perdas históricas da ofensiva socialista para se avançar na perspectiva radical da emancipação do trabalho. Por fim, o desafio teórico e prático historicamente posto ao movimento dos trabalhadores resulta em uma problemática que, embora antiga conhecida dos movimentos contestatórios desde o século XIX, não se tornou menos complexa: reforma ou revolução do sistema do capital? Pelo que fora analisado, a autora faz-nos recordar que mediante a análise da natureza e função social do Estado, a luta pela implementação das reformas políticas, direitos e participação parlamentar não modificará a natureza do Estado. Ao contrário, reforçará as grandes perdas de força de qualquer movimento revolucionário que pretenda trilhar rumo à transição socialista.
Ao final da coletânea temos o terceiro artigo: “Keynesianismo, neoliberalismo e os antecedentes da ‘crise’ do Estado”, no qual Cristina Paniago realiza uma análise do Estado a partir das relações causais entre a crise estrutural capitalista e o neoliberalismo na ordem do sistema do capital contemporâneo. A autora destaca que a crise estrutural é sentida de forma distinta pelo trabalho, que sofre os seus efeitos, e pelo capital, que intervém no curso da crise em seu próprio benefício. O neoliberalismo representa uma das estratégias forjadas pelo capital a fim de se criar as condições necessárias para retirar o sistema da crise, recuperando a lucratividade do capital, tendencialmente em queda. Paniago expõe os equívocos das abordagens que analisam o Estado de forma autônoma, as quais não percebem a relação intrínseca entre economia e política e acabam contribuindo com a mistificação de certa “neutralidade” das formas de intervenção do Estado. Para Paniago (p. 61), “a função social exercida pelo Estado são os interesses em jogo da classe dominante” e, num contexto de crise estrutural, a sua necessária atuação para garantir a reprodução ampliada do sistema do capital torna-se ainda mais importante. Confirmando as análises de Marx e Mészáros, a autora conclui ser característica do Estado capitalista sua atuação enquanto “complemento fundamental à reprodução do capital”, cuja função principal é “garantir a manutenção do sistema como um todo” (p. 62).
O aprofundamento da pesquisa sobre o Estado exige o acesso a todo o debate transcorrido nas últimas décadas nas diversas áreas e correntes do pensamento. A Coletânea resenhada é uma referência segura para as principais teses defendidas por Marx e Mészáros sobre o tema. A compreensão da relação entre Estado e capital permanece incontornável, inclusive para que se logre desmistificar os motivos que contribuíram para o que entendemos, tal como as autoras, como uma regressão histórica da ofensiva de luta e organização dos trabalhadores rumo à transição socialista.


[1] Resenha publicada na Revista Crítica Marxista nº 40, 1 ed. 2015.
[2] Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social - UFRJ; integrante do Grupo de Pesquisa “Lukács e Mészáros: fundamentos ontológicos da sociabilidade burguesa” e do Instituto Lukács. E-mail: lianafdbarradas@hotmail.com

Resenha: Conversando com Lukács: entrevista a Léo Koflr, Wolfgang Abendroth e Hans Heinz Holz; tradução de Gisieh Vianna.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

RESENHA¹

Conversando com Lukács: entrevista a Léo Koflr, Wolfgang Abendroth e Hans Heinz Holz; tradução de Gisieh Vianna. – São Paulo, Instituto Lukács, 2014, pags. 196.


Alexandre de Jesus Santos² 


Uma obra de destaque que emerge no cenário nacional brasileiro é Conversando com Lukács, do filósofo húngaro Georg Lukács (1885 – 1971). Publicada originalmente em 1967, na Alemanha, esta obra veio a público pela primeira vez no Brasil em 1969, por mediação da Editora Paz e Terra. No ano de 2014, ela ganhou uma nova edição do Instituto Lukács – IL –, traduzida por Gisieh Vianna tendo seu prefácio escrito por Talvanes Eugênio, professor da Universidade Federal de Alagoas. Com 196 páginas, o livro dispõe ainda de índices onomástico e remissivo, que ajudam a localizar as referências.

Diferentemente da primeira edição brasileira, que traz em seu corpo outros textos que não fazem parte da entrevista concedida por Lukács a Léo Koflr, Wolfgang Abendroth e Hans Heinz Holz, esta nova edição optou por publicar somente o texto original da entrevista, tal qual a edição Alemã de 1967. Isso permite ao leitor centrar sua atenção no conteúdo debatido por Lukács e seus interlocutores. Vale ressaltar ainda que a publicação desta obra por parte do IL, inaugura a “Coleção Fundamentos”, cujo escopo é a publicação de obras de expoentes do pensamento marxista articulados à centralidade ontológica do trabalho e a afirmação dos princípios revolucionários de transformação da sociedade, a partir, sobretudo, da retomada dos postulados fundamentais da teoria marxiana.

Poderíamos dizer que a radicalidade do pensamento lukacsiano, presente neste livro, está na consideração do trabalho como fundamento último do mundo dos homens, como diria Lessa (2012). Isso implica dizer que todos os complexos sociais só podem existir em uma relação de determinação e autonomia com a categoria trabalho, pois é este que, ao promover a transformação instrumental do mundo que rodeia o homem, cria as condições para o surgimento e o desenvolvimento de outros complexos sociais anteriormente inexistentes. Nesse sentido, todos os temas discutidos na obra possuem, como corporação nuclear, o fundamento segundo o qual todos os complexos sociais (a política, o direito, a educação etc.) só podem existir em profunda conexão com o trabalho compreendido enquanto ação teleológica. Neste sentido, Conversando com Lukács permite-nos uma primeira aproximação com os postulados fundamentais da ontologia lukacsiana. De forma geral, apesar de o livro ser composto por quatro capítulos/conversas intitulados respectivamente ser e consciência, sociedade e indivíduo, elementos para uma teoria política e balanço provisório, as conversas são amalgamadas por esta unidade estrutural.

O interessante de se observar neste livro é o lugar ocupado pela cotidianidade do pensamento de Lukács. O autor quase sempre inicia suas formulações com inferências simples sobre fenômenos que transcorrem no dia-a-dia. A partir daí, questões que aparentemente são ingênuas do ponto de vista fenomênico, ao serem analisadas a fundo pelo autor, mostram-se estruturas complexas que apresentam profundas conexões de teleologia e causalidade conectadas à totalidade social.

Lukács procura demonstrar que, por um lado, todo ser é necessariamente processo. Por conseguinte, o conhecimento produzido sobre ele carrega em si uma transitoriedade condicionada pelas determinações objetivas existentes do ser-assim, na mesma medida em que, em função do seu dinamismo, a formulação teórica sobre o objeto constitui apenas uma aproximação de sua essência, mas nunca a apreensão de sua totalidade; por outro, evidencia que o ser existe independentemente do conhecimento sobre ele construído, postulando, com base no primado mais elementar da filosofa materialista, a prioridade do ser sobre a consciência. É o próprio Lukács quem afirma que “há, pois, uma prioridade da realidade do real, se assim se pode dizer; e, segundo penso, devemos tentar voltar a estes fatos primitivos da vida e compreender os fenômenos complexos a partir dos fenômenos originários” (p. 27). Tal formulação implica dizer que operações complexas são realizadas na cotidianidade sem que, necessariamente, tenhamos conhecimento profundo dos seus mecanismos. Para o autor, isso ocorre pelo simples fato de que tais operações se mostram absolutamente necessárias para a reprodução cotidiana do ser social. Entrementes, se algumas operações são realizadas tacitamente, dada a sua importância para a reprodução social, outras, no entanto, exigem um profundo conhecimento, muito embora quanto mais complexo seja o fenômeno sobre o qual nos debruçamos, mais ilimitadas são as possibilidades do objeto ser conhecido diante da consciência do homem. Por isso, longe de apreender todas as suas determinações internas, o conhecimento sobre o ser é apenas aproximativo.

Partindo da obra de Marx, Lukács discorre sobre a relação intrínseca entre as formas simples de troca sobre as quais o primeiro pondera no primeiro capítulo de O Capital (2013), e sua forma no capitalismo desenvolvido. A propositura do autor, mais uma vez, envolve as relações objetivas engendradas na cotidianidade a partir de necessidades objetivas de permutas simples avançando para relações mais complexas mediadas pelo equivalente universal, o dinheiro. O autor procura demonstrar que “o dinheiro nasceu ontologicamente, de maneira simples, a partir dos atos de troca. Mas os antigos ainda não tinham chegado ao ponto de poder formular esta explicação ontológica” (p. 30).

O problema da cotidianidade, bem como a produção e a reprodução dos diversos complexos sociais a partir das relações materiais da vida cotidiana é retomada pelo autor no livro Prolegômenos para uma ontologia do ser social (2010), muito embora o leitor não encontrará no livro supracitado, de forma tão explícita e com tanta riqueza de detalhes, a materialização de exemplos desta mesma magnitude. A relação existente entre essência e aparência, indivíduo e sociedade, cotidianidade e totalidade social são apenas alguns temas sobre os quais Lukács se debruça durante as conversas contidas no livro. Um aspecto bastante interessante evidenciado na primeira conversa é o esforço realizado pelo autor no sentido de demonstrar como a produção estética está amplamente ancorada, num primeiro momento, nas necessidades objetivas do ser social. A relação ontológica entre a representação do mundo e o mundo realmente existente ganha, na estética, uma relação de causalidade, sendo, portanto, um processo corrente no qual o passado é instrumentalizado pelo presente. Assim, “é claro para todos nós que este “recordar” é um processo histórico, e que, se retomo determinadas lembranças do passado, sou obrigado, exatamente por isso, a entendê-las como momentos ontológicos do vivo desenvolvimento da humanidade e não como uma articulação teórico-cognoscitiva [...]” (p. 43).

Diferentemente de alguns autores que estão na moda no Brasil, quando se trata do debate em torno da memória, como os casos específicos de Halbwachs (2006), Le Goff (1990) Nora (1981), Lukács pensa a memória a partir de uma perspectiva ontológica. Por este prisma, a memória está relacionada ao reconhecimento de si da humanidade articulada com seu processo histórico de desenvolvimento. Longe de ser uma ação puramente individual, ou mesmo coletiva demarcada pelas estruturas herméticas e funcionais, ela se relaciona, antes, com a necessidade imanente de desenvolvimento ontológico da humanidade. Por isso, o resgate ou o refute de uma memória específica deve ser analisado a partir da relação entre o atual desenvolvimento histórico da humanidade e a necessidade ou desnecessidade de evocação de determinadas memórias.

Outro tema bastante relevante debatido neste livro é a problemática do irracionalismo presente nos diversos sistemas filosóficos. As formulações de Lukács sobre este aspecto vão no sentido de demonstrar que, tanto o conceito de intuição quanto o de dedução lógica, não apresentam nenhuma contraditoriedade, muito embora ambos estejam relacionados à estrutura das formulações irracionalistas que atribuem à consciência intuitiva uma certa superioridade em relação à não intuitiva. Afirma o autor que “[...] em certo sentido já na Crítica do Juízo de Kant, atribuiu-se à consciência intuitiva uma certa superioridade em face da consciência não intuitiva. [...] a superioridade da intuição foi simplesmente aceita dogmaticamente” (p. 58). Para Lukács é impossível pensar a razão e o racional “no sentido real” dissociados das conexões objetivas realizadas pelos sujeitos com o fito de reproduzir sua vida material. Longe de a razão ser compreendida como um conceito ou um ato puro, uma intuição, o racional é, antes “aquilo que deriva de nosso trabalho e de nosso confronto com a realidade” (idem). A racionalidade, desta forma, é entendida em uma relação de causalidade do “se... então” no qual o “se” articula-se às situações concretas materializadas na objetividade, e o “então” a conexão racional entre ambos.

Lukács deixa claro que, se a racionalidade é o elemento explicativo da realidade, articulado com o próprio desenvolvimento das condições objetivas e, por conseguinte, da história, a relação racional do “se... então” deve ser pensada sempre dentro do seu tempo. Para o autor, a explicação de Tomás de Aquino para o feudalismo enquanto sistema que se encontrava de acordo com a razão, constituía uma expressão de racionalidade, pois achava-se dentro dos parâmetros do “se...então” do seu tempo. O que fica evidente nesta inferência é que o filosofo húngaro nunca perde de vista a processualidade da história e as conexões existentes entre a objetividade e a subjetividade. Desta forma, o irracionalismo, diferentemente da racionalidade proporcional à objetividade do seu tempo, só pode ser compreendido como uma inadequação de determinada forma de pensar e agir que não se acomoda em um determinado tempo e espaço. Argumenta Lukács que “a práxis de Marat e de Robespierre não podia ser acolhida no sistema racional das classes feudais; surge assim, da situação social, aquilo que chamamos de irracionalismo” (p. 59 – 60).

O irracionalismo moderno, por outro lado, toma forma e conteúdo totalmente diverso, tornando-se não a inadequação histórica de uma conexão racional com o movimento da realidade, mas, contraditoriamente, “um sistema específico de irracionalismo, que depois se difunde amplamente e leva a consequências que os iniciadores de tal sistema, se assim me posso exprimir, não desejavam em absoluto” (p. 60). Nesta perspectiva, diversas formulações que se tornaram conhecidas, não somente na Alemanha, mas em todo o mundo, acabam por difundir teorias irracionalistas que compreendem o mundo como um ser cuja estrutura é incognoscível. Para Lukács, não somente Weber se insere neste universo, mas também “o pragmatismo americano tem aspectos irracionalistas. Bergson está tipicamente inclinado ao irracionalismo; Croce (queira ou não) está cheio de aspectos irracionalistas. O irracionalismo, pois, não é absolutamente um fenômeno puramente alemão, mas um fenômeno internacional” (p. 61). Lukács associa a expansão do irracionalismo, assim como a da manifestação das diversas formas de alienação às novas formas de reprodução do capital, sobretudo aquelas cujo escopo encontra-se na exploração da mais-valia relativa (que, segundo o autor, é a forma predominante de extração da mais-valia, em detrimento da absoluta). Por este motivo, compreender o irracionalismo moderno pressupõe uma ampla articulação entre suas manifestações e o metabolismo social do capital.

Na terceira conversa, intitulada Elementos para uma política científica, muito embora Lukács reconheça o recrudescimento das lutas em função do retrocesso da consciência de classe – resultado das novas objetividades do capital, mas também da atuação decadente da socialdemocracia que tirou completamente do seu horizonte a luta pelo socialismo –, afirma categoricamente que os conflitos entre o capital e o trabalho permanecem vivos e ativos. Apesar de o capitalismo encontrar novas formas de se reproduzir, engendrando, por exemplo, o consumo de massas, fruto, principalmente da exploração da mais-valia relativa, novos problemas são colocados para as classes trabalhadoras, como é o caso do tempo fora do trabalho. Conquanto a luta pela redução da jornada de trabalho foi uma das principais pautas do movimento operário no interior do capitalismo, a subsunção total do trabalho ao capital faz com que até mesmo este tempo fora do trabalho seja apropriado. Evidentemente, a diminuição da jornada de trabalho tão requerida pela classe trabalhadora não significa, em absoluto, a efetivação de uma vida plena de sentindo. 

O que o leitor vai encontrar neste livro, de forma geral, são conversas dessa natureza que versam sobre temas como alienação, exploração, consumo de massas, manipulação, teleologia e causalidade, indivíduo e gênero humano entre outros. Partindo quase sempre da cotidianidade, as conversas ganham dimensões complexas e profundas ao longo do debate (apesar do seu caráter nitidamente introdutório). Se por um lado, o caráter propedêutico do livro possa demonstrar-se problemático, pois muitas questões são levantadas, mas não aprofundadas, por outro, diríamos, torna-se uma leitura introdutória fundamental tanto para El Asalto a la razón e a Estética quanto para Ontologia, inclusive do ponto de vista didático, visto que conta com uma linguagem bastante compreensível e acessível, não obstante os temas complexos de que trata.

¹A presente resenha foi publica na Revista Contenciosa, Año III, nro. 4, primer semestre 2015 - ISSN 2347-0011. Disponível em http://contenciosa.org/.
²Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade; Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB; Grupo de Estudos de Ideologia e Lutas de Classes – GEILC/MP/UESB; Membro do Instituto Lukács
alexandre_magno2@hotmail.com


REFERÊNCIAS:

HALBWACHS, Maurice. A memória Coletiva. Tradução: Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.

LESSA, Sergio. Mundo dos homens: trabalho e ser social. 3º ed. rev. e cor. São Paulo: Instituto Lukács, 2012.

LUKÁCS, Georg. Conversando com Lukács: entrevista a Léo Koflr, Wolfgang Abendroth e Hans Heinz Holz; tradução de Gisieh Vianna. – São Paulo: Instituto Lukács, 2014.

_________. Prolegômenos para uma ontologia do ser social: questões de princípios de uma ontologia hoje tornada possível. Tradução: Lya Luft e Rodnei Nascimento e supervisão editorial Ister Vaisman. São Paulo: Boitempo, 2010.

MARX, KARL. O Capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.
NORA, Pierre. Entre a memória e a história: o problema dos lugares. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos de Pós-graduação em História da PUC-SP. São Paulo: Brasil, 1981.

Resenha: Mészáros e a Incontrolabilidade do Capital

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

RESENHA¹

PANIAGO, Cristina S. Mészáros e a Incontrolabilidade do Capital. Maceió: Instituto Lukács,
2012; 160p.

Edivânia Francisca de Melo²

O livro Mészáros e a Incontrolabilidade do Capital, de Maria Cristina Soares Paniago, é um dos primeiros, no Brasil, a realizar um estudo sistemático sobre a tese da incontrolabilidade do capital, apresentada por Istvan Mészáros em seu livro Para Além do Capital.

No livro Mészáros e a Incontrolabilidade do Capital, Paniago apresenta o capital como sendo “orientado pela expansão” e “movido pela acumulação”, e como um poder hierárquico e dominador. Essa dominação hierárquica e totalizante exercida pelo capital sobre o trabalho é uma condição que não pode ser eliminada da forma de controle do capital, ela permanecerá por todo tempo em que o trabalhador continuar separado do poder de decisão sobre o processo produtivo e sobre as condições de realização do seu trabalho.

O sistema do capital, como lembra a autora em várias passagens do livro, possui um impulso irrestringível à expansão e à acumulação. É essa determinação estrutural que exige que ele se constitua num modo de controle sociometabólico hierárquico e autoritário, capaz de dominar todas as potencialidades subjetivas e materiais da sociedade. A intervenção do Estado moderno é fundamental nesse processo, pois ele atua como um complemento “absolutamente indispensável” para “‘assegurar e proteger numa base permanente as realizações produtivas do sistema’” (Mészáros, apud Paniago, p.81). E é por isso que ele é a estrutura de comando político mais adequada ao atendimento das necessidades de reprodução do capital.

Essa relação de complementaridade existente entre o Estado, o capital e o trabalho é, portanto, uma das teses sustentadas por Mészáros no Para Além do Capital e enfatizada pela autora. Ela ressalta que a intervenção do Estado moderno é essencial para corrigir os antagonismos estruturais do sistema do capital, ou seja, “mantê-los sob controle”, já que sua eliminação completa é impossível enquanto o capital continuar como sistema sociorreprodutivo dominante.

A autora enfatiza ainda que o fato de o capital ser incontrolável o torna também impermeável a qualquer medida ou intervenção que tenha como objetivo questionar o seu modo de funcionamento e seu impulso incontrolável à expansão e à acumulação. A incontrolabilidade do capital, que foi de alguma forma ofuscada em sua fase de ascendência histórica, se expressou nitidamente com o bloqueio da expansão dinâmica do capital e o início da crise estrutural na década de 1970.

A crise estrutural do capital trouxe à tona a impossibilidade de o sistema continuar deslocando os antagonismos e contradições oriundos do seu próprio desenvolvimento. Ao contrário das crises anteriores, esta crise ativa as contradições e antagonismos, interferindo e bloqueando o funcionamento de todos os complexos que integram o sistema do capital. Conforme observa Paniago, essa crise está relacionada aos limites absolutos do capital. Segundo a autora, Mészáros afirma que a ativação desses limites expressa o agravamento da crise estrutural e que tais limites absolutos podem ser evidenciados em quatro contradições dessa nova fase histórica: “1.O antagonismo estrutural entre o capital global e os Estados nacionais; 2. A degradação das condições ambientais; 3. A luta pela emancipação das mulheres; 4. O agravamento do desemprego crônico” (p.64-5). Essas contradições exigem uma intervenção na estrutura global do sistema.

Concomitante à discussão sobre o agravamento da crise estrutural do capital, Paniago traz à tona o debate acerca da impossibilidade de sucesso das estratégias reformistas e das lutas defensivas do trabalho nessa nova fase histórica iniciada com a crise estrutural do capital. Respaldada na investigação de Mészáros, a autora enfatiza que, diferentemente do período de expansão do capital, no qual as contradições que emergiam do desenvolvimento do sistema puderam ser deslocadas ou administradas, e algumas reivindicações parciais dos trabalhadores atendidas, o estreitamento da margem de acumulação lucrativa, expressão da crise estrutural do capital, demandou profundas modificações políticas, econômicas e sociais que atingiram a estrutura global do sistema estabelecido.

Vale ressaltar que o sucesso do deslocamento das contradições e antagonismos do sistema do capital em sua fase de ascensão foi em parte creditado ao movimento socialdemocrata reformista. A estratégia reformista tinha como objetivo reformar o capitalismo sem, porém, ultrapassar os seus limites estruturais. Na verdade, ela aceitava acriticamente tais limites, acreditando ser possível transformar o capitalismo sem propor a superação radical dos “‘pressupostos materiais do sistema do capital’” (Mészáros, apud Paniago, p.103). De acordo com a autora, as melhorias parciais obtidas pela classe trabalhadora no período de expansão dinâmica do sistema vigente apenas foram permitidas pelo capital porque não ultrapassavam os limites impostos por ele, nem impediam a sua expansão lucrativa, pelo contrário, coincidiam com os seus próprios interesses reprodutivos.

Entretanto, o surgimento da crise estrutural trouxe à tona o bloqueio dessa expansão dinâmica, exigindo a construção de uma alternativa viável ao modo de controle sociometabólico do capital. A reorientação da luta dos trabalhadores no sentido da construção de um projeto socialista exige, de acordo com Paniago, a reestruturação radical do modo de controle vigente e a superação da disjunção entre economia e política. Ao contrário das teses que afirmam a possibilidade de o capital ser controlado, e de os problemas que emergem da dominação do capital sobre o trabalho serem absolutamente administráveis pela ordem social estabelecida, a autora afirma, referenciada em Mészáros, que o capital é incontrolável e irreformável. Por isso, a proposta de reforma gradual da socialdemocracia estava condenada ao fracasso desde o início, pois era incapaz de gerar as condições necessárias à transição socialista.

Para desafiar o controle sociometabólico estabelecido, ressalta Paniago, é necessário ir para além do capital, por isso ao invés de propor uma reforma dentro dos limites impostos pela ordem vigente, deve-se lutar pela “construção de uma ordem na qual o controle sobre todas as atividades da vida passa a ser determinado pela decisão consciente do verdadeiro sujeito da riqueza social: o trabalho” (p.152). Num processo de transição para o socialismo se fará necessário, antes de tudo, quebrar, como afirmava Marx, “‘a dominação econômica do capital sobre o trabalho’” (Marx, apud Paniago, p. 34), o que exigirá a abolição das condições impostas pelo capital para a dominação do sistema sociorreprodutivo. Dentre essas condições, destaca-se a emancipação do trabalho, e a superação do capital e do Estado.

Como pudemos perceber nessa breve apresentação do livro de Paniago “Mészáros e a Incontrolabilidade do Capital”, o debate acerca da incontrolabilidade do capital, e das possibilidades de construção do projeto socialista nessa nova fase histórica, inaugurada pela crise estrutural, é necessário e de fundamental importância para o movimento do trabalho. É por isso que consideramos esse livro como referência de leitura não somente para os pesquisadores da obra de Mészáros, mas, para todos aqueles que se preocupam com a construção de uma ordem social radicalmente diferente do modo de controle hierárquico e autoritário do capital, ou seja, para todos aqueles que se preocupam com a construção e realização do projeto socialista.

¹ Resenha Publicada na Revista Novos Temas nº 10.
² Professora Assistente da Faculdade de Serviço Social; Doutoranda em Serviço Social DINTER UERJ/UFAL; Membro do Instituto
Lukács e do grupo de pesquisa "Lukács e Mészáros: fundamentos ontológicos da sociabilidade burguesa".

A Montanha que Devemos Conquistar

sexta-feira, 31 de julho de 2015

A MONTANHA QUE DEVEMOS CONQUISTAR*

István Mészáros
Boitempo Editoral, 2015

RESENHA

Maria Cristina Soares Paniago
Profº da Faculdade de Serviço Social - UFAL

Nesse Fevereiro de 2015, mais um livro do filósofo húngaro marxista, István Mészáros, chega às livrarias no Brasil. Fato que se tornou corriqueiro, dada a enorme difusão de seu pensamento entre nós [1], realizada de forma mais intensa a partir da publicação de sua obra maior, Para Além do Capital – rumo a uma teoria da transição, em 2002. Trata-se do A Montanha que Devemos Conquistar, cujo tema principal é a crítica radical ao Estado e à função vital que exerce para a reprodução do sistema do capital, sob efeito da crise estrutural do capital e sua abrangência global.

O livro está dividido em sete capítulos. Conta ainda com dois apêndices, sendo que o primeiro é uma republicação do capítulo 13 – Como poderia o Estado Fenecer?, do Para Além do Capital, e o outro contém uma entrevista realizada com o autor, por Eleonora de Lucena, em 2013, publicada, à época, na Folha de São Paulo - Caderno Ilustríssima. Logo na Introdução, Mészáros, nos alerta para o fato de que este livro é parte de um estudo mais completo em andamento, que constituirá um “volume vindouro” sob o título de “Critique of the State”. (Mészáros, 2015, p.15)

Recentemente, a Mothly Review Press (New York, 2015) publicou, do mesmo autor, The Necessity of the Social Control, cujo título remete a um dos títulos já publicado no Brasil, em 1987, pela Ensaio (A Necessidade do Controle Social [2]) num pequeno formato; este último corresponde apenas ao primeiro capítulo, em um total de doze capítulos neste formato mais recente. O seu décimo segundo capítulo, sob o título de “The Mountain we Must Conquer: Refletions on the State”, corresponde ao livro que ora conhecemos no Brasil - A Montanha que Devemos Conquistar - acrescido dos dois apêndices acima mencionados.

Estas duas publicações quase simultâneas, nos permitem dirimir toda a dúvida que possa ser disseminada entre nós sobre a relação entre o titulo do livro no Brasil - A Montanha que Devemos Conquistar - e a concepção crítica do autor sobre a essência histórico-ontológica do Estado e de seu papel no processo de transição para uma sociedade que supere o capital, e todas as formas sociais, políticas e econômicas que o constituem.

Na ocasião do lançamento de A Montanha que Devemos Conquistar no Brasil foi publicada uma entrevista feita com Mészáros pelo jornal O Globo (21/02/2015) [3], que causou um certo desconforto aos leitores mais assíduos do autor. Por ainda desconhecerem o conteúdo do livro que acabava de chegar às livrarias, estranharam algumas formulações sobre o Estado redigidas com a pena do jornalista que o entrevistou. Soma-se a isso uma suspeita interpretação sobre o título do livro, no qual aparentemente se encontrava a ideia de que Mészáros estaria defendendo a “conquista” do Estado no capitalismo – “a montanha que devemos conquistar” – como meio para se chegar à superação do capital e de suas iniquidades e desumanidades crescentes. Além disso, de acordo com as palavras do jornalista, “o filósofo defende a ’democracia substantiva’, com a desconcentração do poder de decisão das mãos dos Estados”. Ou seja, igualdade substantiva seria compatível com a permanência do Estado, com menos poder. Ideia jamais formulada por Mészáros.

Aqueles que leem Mészáros sabem a densidade, a profundidade e a complexidade do seu pensamento, o que pode, numa leitura apressada levar o leitor a perder-se entre equívocos e imprecisões, ao ponto de poder contrariar suas ideias já conhecidas. Essa dificuldade provocou uma reação ainda mais incômoda em razão do debate, no Brasil, sobre a eficácia e o acerto da ação política dos trabalhadores em relação ao Estado capitalista, no sentido de realizar sua emancipação do capital. Debate este, na conjuntura atual, enormemente influenciado por ideias reformistas que pregam a possibilidade de se mudar o caráter de classe do Estado, capturá-lo e colocá-lo a serviço dos interesses de classe dos trabalhadores. A ideia de “conquistar” o Estado, mantidas as demais condições de reprodução ampliada do capital, causou estranheza porque em todo o Para Além do Capital a impossibilidade de se controlar o capital por mediações políticas e de se realizar as reivindicações emancipatórias dos trabalhadores no âmbito do sistema é exaustivamente demonstrada por Mészáros. Além disso, constitui uma de suas contribuições seminais a crítica radical ao sistema do capital e a defesa da necessidade urgente de se construir alternativas a ele, evitando-se, assim, o risco real de destruição da humanidade e a degradação ameaçadora da natureza.

Lendo-se A Montanha que Devemos Conquistar, e recuperando-se o cerne das ideias ali desenvolvidas, pode-se concluir que toda ressalva de teor reformista ao livro (ou à controversa entrevista de O Globo) deve ser prontamente descartada.

Todavia, não temos como deixar de considerar que o título do livro colaborou para formulações apressadas e equivocadas, especialmente, estimuladas pela entrevista de O Globo. Conquistar a montanha, no caso o Estado visto como “’um obstáculo gigante’”, sem referência à necessidade de superação dos demais elementos que constituem o sistema dominante (capital e trabalho) é uma contradição estranha ao pensamento de Mészáros. Contradição que pode ser dirimida na continuidade da leitura da própria entrevista, pois em seguida, Mészáros passa a defender a tese de Marx da necessidade do “fenecimento” do Estado (“‘Dizer que o fenecimento do Estado é necessário significa apenas que se trata de uma condição vital para a solução dos problemas em jogo’”). (O Globo, 2015) Mészáros exclui, ainda, toda a viabilidade das teses reformistas a respeito do Estado ao afirmar que a

ideia de que é possível usar a ‘sociedade civil’ contra o poder do Estado, na tentativa de superar as desigualdades estruturalmente arraigadas e saná-las de forma duradoura, é extremamente ingênua, para dizer o mínimo. Assim como as ONGs, essas organizações pateticamente limitadas que dependem, para o seu financiamento e funcionamento, dos recursos concedidos pelo Estado. O Estado é a estrutura política global de comando do sistema capitalista em qualquer uma de suas formas conhecidas ou concebíveis. (O Globo, 2015)

Até aqui pudemos comentar, no interior da própria entrevista de O Globo, os desacertos quanto à exposição das ideias de Mészáros contidas no livro lançado no Brasil. Mas como referido anteriormente, o título do livro tornou-se um chamariz ao provocar dúvidas em leitores incautos ou naqueles que sempre demonstraram enorme intolerância à atitude crítica do autor no exame da história das lutas emancipatórias empreendidas pelo movimento internacional dos trabalhadores, e pelos marxistas em geral, no século XX. Como também uma resistência à convocação feita por Mészáros para a urgência de se realizar uma autocrítica profunda dos erros do passado, capacitando-nos, assim, a recriar meios eficazes para um exitoso combate de classe dos trabalhadores que os possa levar à realização plena da liberdade e da igualdade buscada, somente possíveis numa sociedade sem classes.

Desde o Para Além do Capital observa-se uma profusão de críticos de Mészáros, com base em afirmações infundadas, ou críticas injustificadas, uma vez que não são resultantes de numa leitura rigorosa que o livro exige, tanto para se aceitar ou rejeitar a crítica da economia política para o século XX, sob forte efeito da crise estrutural do capital, elaborada por Mészáros, a partir de Marx e de Lukács.

Nesse sentido, no intuito de evitar novas confusões sobre a produção mais recente do autor, cabe aqui mencionar algumas outras passagens que possam explicitar os múltiplos significados do título - A Montanha que Devemos Conquistar.

O objetivo central do livro é realizar a “crítica radical do Estado, no espírito marxiano”, portanto, com vistas ao “fenecimento do próprio Estado”, pois Mészáros considera-a “uma exigência literalmente vital do nosso tempo”. O Estado, enquanto “modalidade historicamente estabelecida de tomada de decisão global afeta mais ou menos diretamente a totalidade das funções reprodutivas da sociedade”. Com o aprofundamento da crise estrutural do capital passa a ocupar um espaço cada vez maior para cumprir a função de garantir as condições mais adequadas à reprodução acumulativa e expansionsta do sistema do capital. Neste sentido, segundo Mészáros, o Estado se transforma em um “obstáculo” do tamanho de uma montanha, diante da tentativa de “transformação positiva tão necessária de nossas condições de existência”. (MÉSZÁROS, 2015, p.28/16)

Ao abordar a urgência de se elaborar uma crítica radical do Estado, o autor alerta para o fato de que não podemos visar apenas uma superação (a partir ou) do Estado, pois ele somente pode ser compreendido por meio de uma “visão combinada de sua inter-relação tríplice”: capital, trabalho e Estado. Por ser parte constituinte “da base material antagônica do capital não pode fazer outra coisa senão proteger a ordem estabelecida, defendê-la a todo custo, independentemente dos perigos para o futuro da sobrevivência da humanidade.” Concebendo esta determinação, na preservação da inter-relação alienada e desumana historicamente constituída entre capital, trabalho e Estado, é que vai expor a razão de o Estado “representa[r] um obstáculo do tamanho de uma montanha [e] que não pode ser ignorado”. Ainda mais, sob o efeito agravante da crise estrutural do capital “o Estado se afirma e se impõe como a montanha que devemos escalar e conquistar.” (MÉSZÁROS, 2015, p.28-29)

Quando se refere ao Estado, está falando não do Estado “tal como o conhecemos, como formações históricas do capitalismo”, segundo a matéria de O Globo, mas do Estado enquanto tal, para além das “variedades particulares do Estado capitalista”. Como também esclarece que não se trata de derrubar ou abolir o Estado, pois ele não pode ser superado, enquanto não se superar a ordem social que o requer como condição de sua existência, qual seja, aquela regida pelo capital, que necessita da crescente e contínua exploração do trabalho. Como já argumentou no Para Além do Capital, capital, trabalho e Estado se sustentam mutuamente – são “três pilares interligados”. “Nenhum deles pode ser eliminado por conta própria. Tampouco podem ser simplesmente abolidos ou derrubados.” (MÉSZÁROS, 2015, p.29)

Assim, expande o significado da metáfora mencionada no título do livro, pois afirma mais adiante não ser “suficiente escalar a montanha em questão, visando unilateralmente a derrubada do Estado capitalista dada como resposta para a destrutividade que se desdobra em todas as esferas da vida social”. Dilui qualquer veleidade democrática de mudança gradual e de luta intestina no interior do Estado, acrescentando que os problemas que enfrentamos com o “aprofundamento da crise estrutural do capital (...) não são passíveis de uma solução viável dentro de seus termos de referência institucionais/limitados.” Retoma a ideia da articulação necessária entre os componentes vitais da ordem existente, e acrescenta, a 

perigosa montanha confrontando a humanidade é a totalidade combinada de determinações estruturais do capital que deve ser conquistada em todas as suas dimensões profundamente integradas. É claro que o Estado é um componente vital nesse conjunto de inter-relações, tendo em vista o seu papel direto e, agora, avassalador na modalidade necessária de tomada de decisão global. (MÉSZÁROS, 2015, p.29)

A presença do Estado é, hoje, mais requerida, ainda que seu papel remediador das contradições atuantes na operatividade do sistema do capital não possa lograr os mesmos resultados positivos como pôde de alguma forma fazer no passado. Para Mészáros “os corretivos da formação do Estado [do] [4] capital sempre foram problemáticos, mesmo na fase ascendente de desenvolvimento do sistema, mas na fase descendente, eles se tornaram cada vez mais aventureiros/arriscados.” Pois, lembra o autor, que o Estado sempre atuou dentro de “limites bem demarcados, já que seu mandato primordial não era a superação, mas a preservação da centrifugalidade competitiva do capital”.(MÉSZÁROS, 2015, p.103-104)

A intensidade da crítica radical do Estado, e a defesa da tese da necessidade do “fenecimento do Estado” estão especialmente desenvolvidas no capítulo 7 (“A ordem sociometabólica e o Estado em falência”). É nele que o autor adiciona o que deve conter, e ser, uma alternativa socialista, que vise a superação do sistema do capital e de todos seus constituintes vitais, tornando-a, assim, sustentável e duradoura. Toda a produção teórica do autor tem por objetivo apontar os caminhos, e evitar os descaminhos, que o movimento histórico dos trabalhadores tem buscado para eliminar a exploração do trabalho, e instaurar a “igualdade substantiva”, assim, iniciando a verdadeira história da humanidade.

Alerta o autor, que isso não se dará detendo-nos apenas nos aspectos políticos dos confrontos de classe, uma vez que a “estrutura e comando material do capital” é apenas “complementada, e não fundada, no Estado enquanto uma estrutura abrangente de comando político do sistema”. Evidencia, com base nisso, que “o problema da autoemancipação do trabalho não pode ser enfrentado apenas (nem principalmente) em termos políticos”. A libertação do trabalho da relação de subordinação ao capital, como também ao poder do Estado, só é possível “se todas as funções de controle do sociometabolismo (...) forem progressivamente apropriadas e positivamente exercidas pelos produtores associados”. O que exige uma viragem de época genuína na história. Para Mészáros, as “ideias socialistas são (...) mais relevantes hoje do que jamais foram.” (MÉSZÁROS, 2015, p.171/187)

A exposição dos fundamentos que revelam as formas de existência do “Estado enquanto tal” e a necessidade de sua superação, tanto como a do capital e do trabalho abstrato (capítulo 7) foi antecedida por uma crítica às formulações liberais clássicas, às democráticas contemporâneas e a Hegel (capítulos 1, 3,4, 5 e 6). A análise ali apresentada visa desvendar a falsidade, e os limites teoricamente intransponíveis, das alegações legitimadoras do Estado moderno, seja na ilusão da igualdade jurídico-legal, seja no “canto do cisne não intencional de Hegel” e seu Estado Ético, bem como a falsa polêmica comparativa entre os benefícios da democracia representativa e/ou da democracia direta, contra as quais ele define a prioridade emancipatória da democracia substantiva. Dedica um capítulo específico (capítulo 2) a Marx, no qual recupera os fundamentos do Estado formulados por ele, juntamente com a tese do fenecimento do Estado.

Esses capítulos, em vista do pequeno número de páginas que contêm, nos leva a crer que são apenas a enunciação daqueles elementos fundamentais que, mais desenvolvidos, irão compor o “volume vindouro” de uma Crítica do Estado, o que tem ocupado de forma intensa a vida de Mészáros em nossos dias.

Assim ele termina a entrevista publicada no presente livro como segundo apêndice - ao ser indagado sobre “qual é seu plano para o futuro”, diz ele: “Continuar trabalhando em projetos de longo prazo que dizem respeito a todos nós”. (MÉSZÁROS, 2015, p.188)

Aguardamos ansiosos pelo resultado!

*Publicação original (blog Marxismo21) 

Notas:

1 O conhecimento, no Brasil, da produção teórica do autor data de 1981, quando foi publicado pela Zahar Editores o seu livro Marx: A Teoria da Alienação, depois reeditado pela Boitempo Editorial, em 2006. Alguns livros foram também publicados pela Editora Ensaio, os quais, posteriormente, foram igualmente reeditados pela Boitempo Editoral, ou incorporados ao Para Além do Capital (obra originalmente publicada em inglês no ano de 1995). Este último, desde 2002, já teve 3 reimpressões, uma edição revista em 2011, e mais uma reimpressão em 2012. (Mészáros, 2015, p. 180)
2 Também publicado pela The Merlin Press (London), em 1971.
3 Depois de concluída esta resenha saiu uma nova matéria sobre o livro recém lançado (Folha de São Paulo - 09 de Maio de 2015), com equívocos e incompreensões ainda mais injustificadas a respeito das ideias de Mészáros. A matéria de O Globo, aqui mencionada, pode ser encontrada em versão completa no blog da Editora Boitempo.

4 Aqui preferimos substituir a preposição “no”, da tradução para o português, pela preposição “do”. Nos parece corresponder melhor à relação entre Estado e capital como aparece no original em inglês – “capital’s state formation“. A respeito da tradução para o português notamos diversas ocorrências desta ordem, e certa inconstância na tradução de termo mais importante teoricamente, tal como “downward equalization of the differencial rate of exploitation”, traduzido como “equalização descendente da taxa de exploração diferencial”, na maioria das vezes. Com isso, Mészáros, está se referindo, como menciona na entrevista (Apêndice 2), a uma equalização descendente – não no sentido de diminuição - mas em relação à aproximação entre os níveis de ganhos da classe trabalhadora da “metrópole” e dos países “periféricos (MÉSZÁROS, 2015, p. 103/319 em inglês, 181). De fato, o que ele quer sinalizar é a equalização entre as taxas diferenciais de exploraçao no conjunto do mundo globalizado como um dos efeitos da crise estrutural do sistema. John Bellamy Foster, em sua apresentação do livro, já mencionado, publicado pela Monthly Review Press, ressalta que junto à tendência à intensificação da taxa de exploração, Mészáros, também se refere a ela como “uma equalização descendente” (“downward equalization”), o que para Foster pode ser entendida “do ponto de vista dos salários dos trabalhadores, e, assim, uma corrida para o fundo no mundo todo”, com uma redução global dos custos do trabalho. (MÉSZÁROS, 2015a, p.15)

Referência bibliográfica:

MÉSZÁROS, ISTVÁN. A Montanha que Devemos Conquistar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.
_________________. The Necessity of the Social Control (e-book). New York: Monthly Review Press, 2015a.
O GLOBO. “Filósofo István Mészáros analisa acensão de novos partidos na Europa, como Syrisa e Podemos”. Entrevista realizada por Leonardo Cazes. Publicada em 21 de Fevereiro de 2015, Rio de Janeiro. Acesso em 21 de Fevereiro. Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/livros/filosofo-istvan-meszaros-analisa-ascensao-de-novos-partidos-na-europa-como-syriza-podemos-15395541